Na bovinocultura, a criação dos animais em grupo pode facilitar a disseminação de agentes infecciosos ou parasitários, além da possibilidade de haver manifestação clínica coletiva quando há fatores que desencadeiam distúrbios metabólicos, nutricionais ou até mesmo intoxicações.
Dessa forma, a realização da necropsia dos animais se torna uma ferramenta primordial tanto para o diagnóstico individual quanto para o diagnóstico de rebanho.
Nesse texto iremos trazer informações a respeito da necropsia em bovinos leiteiros, abordando desde como deve ser executada e quais são as suas etapas, além de também ressaltar a importância da sua realização.
O que é esse exame e o que se deve saber antes de realizar?
O exame de necropsia, também chamado de exame post mortem, é uma ferramenta diagnóstica fundamental utilizada na medicina veterinária, sobretudo, na medicina de produção. Reconhecida por ser uma metodologia simples e acessível, é possível que sua aplicação seja feita em clínicas, hospitais ou até mesmo no campo.
Um bom exame post mortem deve ser feito de forma completa, seguindo uma sequência definida que garanta uma avaliação criteriosa de todos os órgãos, observando as alterações morfológicas e coletando material para uma futura análise laboratorial caso se faça necessário.
É importante que o procedimento seja realizado por um médico veterinário capacitado a diferenciar as alterações post mortem, que são as mudanças que ocorrem no corpo após a morte, de ante mortem, que são as alterações causadas pelo processo patológico.
Além disso, é fundamental que o profissional seja apto a fazer uma interpretação correta dos achados observados.
Ao se deparar com uma situação de necropsia, é necessário, em um primeiro momento, realizar uma boa anamnese com o responsável pelo animal, verificando o histórico clínico do bovino e do rebanho, além dos manejos reprodutivos, sanitários e nutricionais implementados na propriedade. Esses dados coletados previamente são fundamentais para direcionar a atenção do veterinário durante o exame.
A necropsia deve ser feita o mais breve possível após a morte do animal, pois, dessa forma, as alterações post mortem não estarão completamente estabelecidas, o que facilitará a identificação e interpretação dos achados.
Caso não seja possível realizar o exame imediatamente após o óbito, é importante se atentar a forma de conservação do corpo, armazenando, se possível, em local resfriado e sem radiação solar, o que reduz a velocidade da autólise.
Como deve ser executada uma necropsia em bovinos?
Para a execução de uma necropsia minuciosa a campo, é importante que o profissional responsável ou a fazenda possua os instrumentos necessários para a realização da mesma, porém, caso não tenha, ainda é possível realizar uma boa necropsia com uma boa faca e uma serra.
Dentre os principais materiais necessários, podemos citar:
- Tesouras;
- Facas;
- Pinças;
- Barbantes;
- Serra;
- Costótomo;
- Alicate;
- Machado;
- Régua.
Também é importante que tenha à disposição materiais para coleta e armazenamento de materiais, para que seja possível chegar a um resultado histopatológico confiável a partir das amostras.
Principais instrumentos utilizados durante uma necropsia. Fonte: PAIXÃO et al. (2023)
Pensando no risco de contaminação por doenças infecciosas zoonóticas, é indispensável que o veterinário utilize EPI ‘s durante todo o procedimento, prevenindo a exposição de doenças altamente letais, como a raiva.
Sobre esses EPIs, temos os principais:
- Botas de borracha;
- Avental impermeável;
- Luvas;
- Máscara;
- Óculos;
- Protetor facial.
Principais EPI ‘s que os responsáveis pela necropsia devem utilizar durante o procedimento. Fonte: PAIXÃO et al. (2023)
Quais são as etapas da realização da necropsia?
Após a anamnese e análise do histórico do animal e da propriedade, é sugerido seguir uma ordem de avaliação, evitando a falta de exame ou contaminação de alguns órgãos com conteúdo de órgãos adjacentes:
1. Inspeção e incisão inicial
Realiza-se a inspeção da condição corporal do animal, incluindo pelos, pele, tetos e genitálias, buscando a identificação de parasitas e lesões.
A carcaça deve ser posicionada em decúbito lateral esquerdo para facilitar o acesso e manipulação dos outros órgãos abdominais, como intestino e fígado, e não favorecer apenas o acesso ao rúmen.
Caso o animal seja posicionado sobre o lado direito, o rúmen poderia dificultar o acesso a esses órgãos. Mucosas e orifícios também são examinados.
Bezerro posicionado em decúbito lateral esquerdo para a realização de necropsia. Fonte: PAIXÃO et al. (2023)
Exame post mortem das mucosas aparentes e dos orifícios naturais. Fonte: PAIXÃO et al. (2023)
A necropsia é iniciada com incisões na região axilar e inguinal para desarticular os membros torácico e pélvico, em seguida, por uma incisão ventral para acessar os órgãos internos. O tecido subcutâneo, músculos e linfonodos são avaliados.
Desarticulação dos membros torácico e pélvico. Fonte: PAIXÃO et al. (2023)
2. Evisceração abdominal
É feita uma incisão ventral na cavidade abdominal, atentando-se para não perfurar o rúmen. Em bezerros neonatos, é necessário contornar o umbigo e realizar a avaliação interna e externa do mesmo.
Após a abertura da cavidade, é feita a inspeção e coleta de líquidos peritoneais, avaliando volume, cor e turbidez.
O intestino grosso deve ser separado com ligaduras e o intestino delgado é retirado cortando a base do mesentério. Em seguida, são removidos o fígado e o pâncreas. Os rins são removidos posteriormente, identificando artérias e veias renais.
Nos órgãos reprodutivos, deve ser removido o funículo espermático e testículos em machos, e, em fêmeas, são retirados os ovários e cornos uterinos.
Abertura da cavidade abdominal em bovino adulto prevenindo a ruptura acidental do rúmen. Fonte: PAIXÃO et al. (2023)
3. Evisceração oral e torácica
Primeiramente o diafragma deve ser examinado para detectar qualquer anormalidade, como pressão negativa ou projeção para a cavidade abdominal, que pode ser indicativo de presença de líquido ou gás.
O sistema cardiorrespiratório deve ser removido, iniciando por cortes na mandíbula para acessar a cavidade oral e remover a língua, laringe e traqueia. É feita uma abertura com faca na região entre costelas e esternos, permitindo a remoção de órgãos torácicos e estruturas adjacentes.
Acesso à cavidade torácica por incisão do diafragma. Fonte: PAIXÃO et al. (2023)
4. Retirada da cabeça
Para a remoção da cabeça, a pele e musculatura do pescoço são incisionadas até a articulação atlanto-occipital, seccionando a dura-máter e a medula espinhal.
Para retirar o encéfalo, o crânio é serrado. O assoalho do crânio é removido para a avaliação de gânglios e hipófise.
Abertura da articulação atlanto-occipital e secção da dura-máter, da medula espinhal e dos ligamentos. Fonte: PAIXÃO et al. (2023)
Qual a importância da realização da necropsia em bovinos?
Conhecer precisamente a causa da mortalidade em animais jovens ou adultos de uma determinada propriedade permite uma abordagem mais minuciosa para atuar com exatidão nos eventos que levam à morte na fazenda.
Com isso, as medidas preventivas podem ser direcionadas nas doenças mais comuns e nos períodos de maior risco.
Estudos realizados em vacas leiteiras alojadas em sistema Free Stall, classificadas em ordem de parição, conseguiram demonstrar os principais diagnósticos para óbitos nesses animais.
As causas subjacentes da morte em vacas leiteiras necropsiadas categorizadas por paridade. Fonte: Hagner et. al. (2023)
Nesse estudo, os distúrbios no úbere se mostraram a principal causa de mortalidade nas vacas, principalmente nas multíparas, seguido por distúrbios digestivos e distúrbios associados ao parto.
Nesse mesmo trabalho, também analisaram estudos anteriores que mostraram diferença entre a percepção dos produtores sobre a causa da morte das vacas leiteiras e o resultado da necropsia, com apenas cerca de metade dos casos diagnosticados corretamente por eles.
A maior concordância de diagnóstico foi nos casos de mastite, distúrbios de parto, doenças locomotoras e acidentes, que são mais facilmente reconhecíveis pelos produtores. No entanto, as doenças cardíacas, causas desconhecidas e pneumonia não foram reconhecidas com precisão pelos produtores.
Quando o produtor não chegou a uma conclusão sobre a causa da morte, a necropsia diagnosticou 88,2% dos casos, o que vem destacar a importância dos exames post mortem dos animais de uma fazenda leiteira.
Outro aspecto de grande relevância no exame post mortem é a importância da análise histopatológica. Algumas lesões só podem ser identificadas histologicamente, portanto, a rotina de amostragem em todos os órgãos evita a perda de informações que podem ser fundamentais para fechar o diagnóstico completo.
No estudo em questão, a análise histopatológica alterou ou adicionou informações importantes aos diagnósticos preliminares em 18,2% dos casos.
Quais os limites da necropsia para determinar a causa da morte do animal?
Embora a necropsia seja uma ferramenta poderosa, em alguns casos a causa da morte pode não ser identificada de imediato, sendo necessário lançar mão de análises laboratoriais adicionais para que possamos obter um diagnóstico conclusivo.
Quanto aos limites importantes que podem dificultar a identificação precisa do motivo do óbito, citaremos alguns dos principais:
- Condição do cadáver: sabemos que o tempo decorrido entre a morte e a realização da necropsia vai influenciar muito nos resultados. Identificar se o cadáver já está em um estado avançado de decomposição, com muitas alterações teciduais e orgânicas é essencial para que não haja confusão com lesões. Além disso, a autodestruição das células após a morte pode comprometer a integridade dos tecidos e isso vai acontecer principalmente se o animal estiver exposto a altas temperaturas ou a necropsia for realizada tardiamente, o que pode mascarar lesões importantes.
- Lesões inespecíficas: durante o exame de necropsia, podemos observar algumas alterações inespecíficas, ou seja, aquelas que podem ser causadas por diferentes patologias e até mesmo sendo apenas um achado pós-morte. Por isso, é importante ter em mente que nem sempre as lesões estão diretamente relacionadas à causa da morte, pois as mesmas podem ser secundárias ou consequência de outro problema não identificado.
- Doenças metabólicas ou funcionais: é importante entendermos que algumas doenças metabólicas como cetose, hipocalcemia, acidose ruminal e outros distúrbios eletrolíticos e também doenças funcionais como arritmias cardíacas podem não deixar lesões macroscópicas evidentes.
- Toxinas e envenenamentos: toxinas que provocam a morte súbita podem não provocar alterações visíveis nos órgãos internos. A necropsia pode sugerir uma intoxicação, por exemplo quando se observa lesões hepáticas ou renais, mas a confirmação pode exigir uma coleta de amostras e análises laboratoriais mais detalhadas.
Considerações finais
A necropsia é uma ferramenta de grande utilidade e extremamente acessível para o diagnóstico de diversas alterações patológicas, o que vai desempenhar um papel importante na gestão de saúde do rebanho.
A realização de necropsias pode trazer diversos benefícios, os quais impactam tanto a saúde animal quanto a eficiência econômica da produção.
Na maioria dos casos, ela pode fornecer uma conclusão definitiva, mas, em outras situações, pode necessitar de análises laboratoriais mais específicas. É importante ressaltar que a necropsia vai auxiliar na tomada de decisões informadas sobre o manejo, nutrição, biossegurança e saúde.
Para seu sucesso, a necropsia depende do treinamento do médico veterinário, do tempo decorrido entre o óbito e o início do procedimento, da técnica sistemática utilizada, das condições do local e da utilização de instrumentos apropriados.
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Autores: Mateus Abranches e Laryssa Mendonça – Equipe Leite Rehagro.