O estômago de ruminantes é composto por 4 compartimentos: rúmen, retículo, omaso e abomaso. Cada um deles apresenta um papel no processo de digestão.
Inicialmente o rúmen atua como uma câmara fermentativa dos alimentos ingeridos, em seguida esse bolo alimentar é direcionado ao retículo, que é componente principal na ruminação pois realiza as contrações que geram regurgitação.
O terceiro componente do trato digestivo dos ruminantes é o omaso, esse está relacionado com a absorção de água, ácidos graxos voláteis e outros nutrientes, por último temos o estômago glandular chamado de abomaso responsável por secretar enzimas, hormônios, ácidos e água.
As úlceras abomasais são um grande desafio na pecuária leiteira, os animais que apresentam essa afecção têm menor consumo de alimento, produzindo menos leite ou tendo seu desenvolvimento afetado, ambos levando a significativa perda econômica.
Além disso, por se tratar de uma afecção de causa multifatorial e sintomatologia inespecífica grande parte dos animais só são diagnosticados em exame post-mortem de necropsia.
Nesse texto iremos abordar úlceras abomasais em bezerras, entendendo melhor esse desafio, como ele ocorre, os fatores relacionados a ele, como é feito o diagnóstico, como isso impacta a cria de bezerras leiteiras e, como tratar esses casos e como prevenir novos.
O que são úlceras abomasais?
Em bezerras, o abomaso é o principal compartimento em tamanho e função, pois nessa fase o animal ainda não é um ruminante funcional e durante o desenvolvimento dos compartimentos do estômago, o abomaso deixa de apresentar uma mucosa lisa e passa a ser repleto de vilosidades.
A mucosa deste órgão secreta ácido clorídrico, pepsina, pepsinogênio, quimosina, gastrina e outros componentes que auxiliam na proteção da mucosa contra a acidez do ambiente, como bicarbonato, muco e prostaglandinas.
As úlceras são caracterizadas por uma lesão no epitélio do abomaso, podendo ser uma lesão na mucosa ou até mesmo penetrar a camada muscular e causar perfuração da parede abomasal. Um grande problema da úlcera abomasal é o processo de autodigestão, quando a mucosa está lesionada, íons de hidrogênio e enzimas como a pepsina conseguem atuar no local digerindo o tecido e aumentando a lesão.
As úlceras podem ser classificadas em grau I, II, III e IV de acordo com a gravidade da lesão.
Classificação das úlceras de abomaso de acordo com características das lesões e respectivos sinais clínicos. Fonte: Radostits et al., 2000.
Como as úlceras ocorrem?
As úlceras abomasais são afecções multifatoriais, mas a etiologia de como ocorrem ainda não é exata. Alguns pontos que predispõem a ocorrência de úlceras abomasais e dentre eles podemos citar:
- Estresse;
- Mudanças ambientais;
- Mudanças de dieta;
- Hiperacidez;
- Agentes infecciosos como Clostridium perfringens, Escherichia coli, Streptococcus sp, Staphylococcus sp e Salmonella sp;
- Agentes parasitários que causam lesão na mucosa como o Haemonchus contortuse a Osteartagia ostertagi;
- Uso de anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs) indiscriminadamente;
- Deficiência de minerais.
Em bezerros a deficiência de cobre é associada a diminuição da imunidade e má formação do tecido do abomaso, já que a enzima responsável pela resistência estrutural ligada a elastina e colágeno nesse compartimento é dependente de cobre. Assim, uma maior fragilidade da parede abomasal poderia predispor a ocorrência de úlceras.
O estresse está presente em diversos momentos no início da vida desses animais, devido a transporte, mudanças de lote, desaleitamento, introdução a ambiente coletivo e outras experiências.
Nesses momentos, o estresse aumenta a liberação de corticosteroides, os quais podem estimular a secreção de ácidos e enzimas como a pepsina no abomaso, favorecendo a ocorrência de úlceras.
Os AINEs atuam em enzimas COX 1 (ciclooxigenase 1) e/ou COX 2 (ciclooxigenase 2), as primeiras são ligadas a produção de prostaglandinas gástricas, as quais estimulam a secreção de muco e bicarbonato que atuam como citoprotetores abomasais.
Assim, o uso indiscriminado de AINEs diminui a proteção da mucosa abomasal predispondo a formação de úlceras.
Quando em conjunto, o estresse junto ao uso prolongado de AINEs, podem ser agentes fortemente ligados a ocorrência de úlceras em bezerras e um grande desafio no período devido a dificuldade de reduzir estresse e a necessidade do uso de AINEs para outras enfermidades comuns nesse período como a diarreia.
Como diagnosticar e tratar úlceras abomasais?
O diagnóstico é desafiador, sendo possível observar os sinais clínicos e também usar exames complementares.
Em casos de úlceras hemorrágicas é possível observar um quadro de anemia hemorrágica aguda no hemograma e em casos em que ocorre a perfuração da parede do abomaso e consequente peritonite podemos adicionar a isso alterações como leucocitose.
As fezes com sangue oculto são um bom indicativo de úlcera, sendo necessárias mais de uma avaliação pois a liberação de sangue nas fezes ocorre de forma intermitente.
Outro sinal é a melena, nesse caso, as fezes com aparência de “piche” pode ser caracterizado como um sinal patognomônico. Além disso, é possível avaliar a concentração plasmática de gastrina e pepsinogênio que se encontram elevadas em casos de sangramento de abomaso.
Como observado, a enfermidade é de difícil diagnóstico, por isso em grande parte dos casos não ocorre identificação e as alterações são encontradas somente em exame post-mortem.
Imagens de diferentes úlceras abomasais encontradas na necropsia em bovinos leiteiros, em todas as imagens as úlceras são classificadas como tipo 4. Fonte: Pedro Germano.
O tratamento indicado é principalmente sintomático e de suporte. Algumas possibilidades são transfusão sanguínea em animais que perderam muito sangue, uso de antiácidos e protetores de mucosa, tratamento da causa base em casos de agentes contagiosos ou parasitários.
Importante ressaltar que os animais em tratamento devem ter o estresse reduzido ao máximo, alimentação e água de qualidade.
O prognóstico é desfavorável na maioria dos casos devido a dificuldade de diagnóstico e tratamento não específico, principalmente quando as úlceras são perfurativas, muitas vezes levando a bezerra a óbito.
Assim podemos observar que as úlceras abomasais podem levar bezerras a óbito ou causar deficiências no desenvolvimento caso sobrevivam, gerando um grande impacto econômico negativo ao produtor.
Quais podem ser os impactos no desenvolvimento das bezerras?
Quando as bezerras desenvolvem úlceras abomasais, elas podem ser prejudicadas de várias formas, mas principalmente quando relacionamos o seu crescimento e desenvolvimento e a saúde. Dentre os principais impactos observados, podemos citar:
- Redução no consumo de alimentos: Bezerras com úlceras abomasais geralmente apresentam dor e desconforto, o que pode levar a uma diminuição no apetite. Isso resulta em menor ingestão de alimentos e, consequentemente, em uma redução no ganho de peso.
- Perda de peso: Devido à menor ingestão de nutrientes, as bezerras afetadas tendem a perder peso ou não ganham peso de maneira adequada, o que afeta diretamente o desempenho esperado para o crescimento.
- Redução na eficiência alimentar: Mesmo que as bezerras continuem a comer, a eficiência com que elas convertem os alimentos em crescimento pode ser reduzida. As úlceras podem afetar a digestão e a absorção de nutrientes, levando a um menor desempenho.
- Retardo no crescimento: A saúde geral comprometida devido às úlceras pode retardar o crescimento das bezerras, fazendo com que elas não atinjam os marcos de desenvolvimento esperados para a idade.
- Aumento da mortalidade: Em casos graves, as úlceras abomasais podem levar à morte, especialmente se resultarem em complicações como perfuração do abomaso ou peritonite.
Como prevenir as úlceras de abomaso?
A etiologia multifatorial da afecção torna a prevenção um desafio, mas podemos enfatizar alguns pontos como atenção à alimentação adequada, manejo não estressante dos animais, manter um calendário sanitário com vacinação, vermifugação e monitoramento de doenças.
- Nutrição e manejo adequado: Oferecer uma dieta balanceada em termos de energia, proteína, fibra e minerais é importante. Além disso, evitar dietas ricas em grãos que podem aumentar a produção de ácidos no abomaso pode ser fundamental para a prevenção no desenvolvimento de úlceras. Aliado a isso, a incorporação de fibras de alta qualidade que ajudam a estimular a mastigação e a produção de saliva a fim de neutralizar os ácidos no estômago também podem contribuir nessa prevenção.
- Manejo do estresse: Minimizar fatores de estresse, como mudanças bruscas na dieta, condições de manejo inadequadas como o estresse relacionado ao manejo como transporte, desmame, agrupamento, é essencial para a saúde do abomaso. É importante entender que o estresse pode alterar a motilidade gastrointestinal e aumentar a produção de ácido. Além disso, é importante oferecer um ambiente que promova o bem-estar dos animais, como espaço adequado, ventilação e acesso constante a água limpa e fresca.
- Monitoramento: É importante monitorar as bezerras para sinais de desconforto, mudanças no comportamento alimentar e a condição corporal pode auxiliar na identificação precoce de problemas de saúde e consequentemente contribuem para que seja possível agir rapidamente para evitar o agravamento das úlceras.
- Prevenção de outras doenças gastrointestinais: Realizar o controle de parasitas e certificar que os animais estejam livres de parasitas internos que podem causar irritação e inflamação, elevando o risco de úlceras.
- Manejo de medicamentos: Usar de maneira cautelosa os medicamentos, principalmente os Anti-inflamatórios Não Esteroidais (AINEs) é fundamental. O uso excessivo ou inadequado de AINEs pode aumentar muito o risco de úlceras abomasais e por isso, seu uso deve ser cauteloso e bem definido dentro dos protocolos de tratamentos de doenças que requerem sua utilização.
Considerações finais
Sabemos então que as úlceras abomasais em bezerras leiteiras representam um desafio significativo para a saúde e o desempenho dos animais.
Esses distúrbios podem comprometer o crescimento, a eficiência alimentar e aumentar a susceptibilidade a outras doenças, além de potencialmente levar à morte em casos graves.
A prevenção é considerada a melhor abordagem a fim de evitar o impacto negativo trazido pelas úlceras abomasais. Implementar adequadas práticas de manejo nutricional e trabalhar para a redução do estresse são essenciais.
Além disso, não podemos esquecer a importância do monitoramento contínuo da saúde e comportamento das bezerras e também de termos um manejo integrado, combinando nutrição e ambiente adequados, um bom controle de doenças e principalmente um uso cauteloso de medicamentos.
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